Monday, March 20, 2006

Cortázar

Este é, pra mim, um dos melhores trechos de "O Jogo da Amarelinha" do Cortázar.
Nada descreve tão bem um início de relacionamento, o despertar de uma nova paixão...


"Durante toda essa tarde, Oliveira assistiu, outra vez, uma vez mais, uma de tantas vezes mais, testemunho irônico e comovido do seu próprio corpo, às surpresas, aos encantos e às decepções da cerimônia. Habituado, sem saber, aos ritmos da Maga, de repente um novo mar, uma agitação diferente, o arrancava aos automatismos, confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão, enredada de simulacros. Encanto e desencanto de passar de uma boca pra outra, de procurar com os olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentir que a curva é diferente, uma base espessa, um tendão que se crispa rapidamente com o esforço de incorporar-se para beijar ou morder. Cada momento do seu corpo, frente a um desencontro delicioso, ter de estender-se um pouco mais, ou baixar a cabeça para estender-se para a boca que, antes, estava ali perto, acariciar umas ancas mais estreitas, provocar uma réplica e não encontrar, insistir, distraído, até se dar conta de que era preciso inventar tudo outra vez, que o código não fora seguido, que as chaves e as cifras terão de nascer de novo, ser diferentes, responderem a outra coisa. O peso, o cheiro, o tom de uma risada ou uma súplica, os tempos e as precipitações, nada coincidia, embora fosse igual, tudo nascia de novo. Sendo imortal, o amor brinca de inventar-se fugindo de si mesmo, para regressar na sua espiral surpreendente, os seios cantam de outro modo, a boca beija mais profundamente ou como de longe e, num momento, onde antes havia algo como a cólera ou a angústia é agora jogo puro, a agitação incrível, ou, ao contrário, na hora em que, antes, caia no sono, no murmúrio de coisas doces e ridículas, agora existe uma tensão, algo incomunicado, mas presente, que exige incorporar-se, algo como uma raiva insaciável. Apenas o prazer em seu último esvoaçar é igual; antes e depois, o mundo se fez em pedaços e é preciso criá-lo de novo, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra."

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