Tuesday, September 06, 2005

Meu anjo negro

Um parto...
Arrancada bruscamente da proteção materna e puxada pelo pés.
Meus pulmões ainda não estão prontos.
O médico não consegue me fazer chorar.
Tento respirar e sufoco.
UTI
Oxigênio
Enfermeiros cabisbaixos. O sopro inexistente de uma vida recém chegada. Finda com a mesma rispidez com que começou.

Acordo sem ar, trêmula, fora apenas um sonho.
Olho em volta, reconheço os tons neutros de um quarto de hotel. Sim, estava só. Ele partira silenciosamente e me arrancara de seu mundo, puxada pelos pés, com a mesma rispidez com que tudo começou. Deito outra vez e me enrolo no cobertor. Faz muito frio fora do seu ventre.
Já estávamos juntos fazia algum tempo. Mesmo assim, cada partida sua era como o impacto de um parto. O medo, a exposição, a necessidade do colo materno. Cada vez tinha mais certeza de que se tratava de um ser sobrenatural. Um anjo negro, alimentando-se de almas. O contraponto do vício. A necessidade de satisfazê-lo mesmo que isso custasse a minha própria essência.
Como todas as outras vezes, ele tinha sido impiedoso o bastante para me poupar a vida. Mantinha-me imóvel debaixo das cobertas, num esforço intenso e incessante para me restabelecer. Sentindo-me uma suicida frustrada que se recupera com disciplina, só pelo prazer de estar saudável quando chegar o grande dia.
Torno a lembrar e a sentir todos os momentos. O início da noite, a máscara do sucesso. O homem mais bonito, o mais poderoso, o mais capaz. E de repente, o vazio dos olhos, o sorriso doce que transmite uma dor que sufoca o peito.
Aproximou-se e beijou-me com suavidade. E numa fração de segundos os papéis estão invertidos. O que seria uma simples troca de fluidos ou um prelúdio de sexo se torna uma luta intensa e desesperada. Tento de todas as formas transmitir-lhe um pouco de vida , doar parte de minha alma, aplacar essa dor tão grande que domina seu corpo e o meu. Aceita a oferenda relutante, como se meu sacrifício fossa sua última chance de sentir um pouco de felicidade.
Nossos corpos se procuram e tentam unir-se em vão, até caírem exaustos num ímpeto de prazer. Fita-me com a gratidão melancólica de um doente terminal que ganhou alguns dias de sobrevida. Diz que me ama sem convicção. Sorrio da forma mais sincera que posso.
Separamo-nos derrotados. Olho para ele com a resignação de um mártir que é poupado por um ímpeto de bondade do seu carrasco. Outra vez não me foi permitido dar minha alma por inteiro. Torno a deitar e o observo partir, deliciando-me com o pouco de tristeza que me permitiu roubar.
Espero ansiosamente o fim da tua covardia.
Até o próximo encontro.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

O texto, como sempre, perfeito...
Adoro a maneira que você escreve! ;)
A tua sinceridade me encanta!! =))
Ah... e diga a "Rafa Guerra linda de morrer!" que o layout novo ficou tudo!!! hahaha
beijos

6:26 PM  
Anonymous Anonymous said...

Thank you!
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10:59 PM  
Anonymous Anonymous said...

Good design!
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10:59 PM  

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